A pandemia do novo coronavírus reverbera e se entranha em crises crônicas da Nicarágua, onde o regime comandado pelo ditador Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, peca, sobretudo, pela falta de transparência e pelo descaso para gerir o combate à doença. Basta verificar a discrepância entre os dados oficiais e os de um conselho de médicos que monitora a doença. O governo informa apenas 15 casos e cinco mortes; o Observatório Ciudadano, por sua vez, assegura que pelo menos 431 pessoas foram infectadas pela Covid-19 e 86 morreram.
Numa demonstração de desinteresse e omissão pelo tema, Ortega simplesmente sumiu. Reapareceu em cadeia nacional, após 32 dias, para reafirmar que uma quarentena, defendida por epidemiologistas e empresários, destruiria o país e sua economia.
Na rota oposta às recomendações da Organização Mundial de Saúde, ele incentiva a aglomeração, promovendo procissões religiosas, festivais e campeonatos de boxe, e mantém fronteiras abertas. O aeroporto funciona, embora os voos internacionais tenham sido suspensos por decisão de outros países. Com isso, o regime tenta dar uma aparência de normalidade à pandemia.
“Os que pedem o confinamento são os mesmos que quiseram afundar o país em 2018 e agora se aproveitam da situação”, repete o ditador. Ele refere-se à onda de protestos contra o regime, há dois anos, deflagrada por uma controversa reforma da segurança social, que aumentou impostos e reduziu benefícios. Cerca de 300 manifestantes morreram e centenas foram presos. O cerco levou 70 mil nicaraguenses ao exílio.
No terceiro mandato consecutivo, Ortega e a esposa-vice se sustentam no poder com apoio das Forças Armadas e da Polícia Nacional, a quem cabe a perseguição e a repressão de dissidentes e opositores. O regime instaurou a reeleição indefinida, fechou jornais e meios de comunicação, expulsou funcionários da ONU e da OEA. Como observa Paulo Abrão, secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Nicarágua vive um estado de exceção com aparência de legalidade.
Neste contexto, a pandemia do novo coronavírus só reforçou e aprofundou a crise de institucionalidade do país. “Os dados oficiais não são confiáveis. O governo tem controle sobre os outros dois poderes: o Legislativo, que não fiscaliza, e o Judiciário sem independência”, atesta ao G1 o secretário da CIDH.
Informes de associações médicas do país dão conta da falta de transparência nos dados divulgados pelo governo e também da ausência de testes para detectar o vírus. Ou seja, não há controle sobre a doença. Médicos que contestaram os dados do Ministério da Saúde foram demitidos e perseguidos. Noventa profissionais de saúde foram infectados, segundo o Grêmio Médico Nicaraguense.
“Estamos diante de um governo negligente, inexistente e criminoso. Persiste a decisão de negar a realidade, manipular estatísticas e aplicar a lei da focinheira nas unidades de saúde públicas e privadas” denuncia um relatório da entidade. Mais de 300 profissionais assinaram outro manifesto, defendendo ações de mitigação para reduzir o impacto, que preveem como catastrófico, na taxa de mortalidade e no sistema de saúde.
Atrasado em relação aos vizinhos do continente, o governo só começou a atuar no combate à pandemia 40 dias depois de confirmar o primeiro caso. Como medidas de prevenção, promove visitas de profissionais de saúde às comunidades e coordena a desinfecção de transportes coletivos. São providências insuficientes para conter o pico da doença, na avaliação das associações de médicos.
O ditador, contudo, prefere minimizar o assunto, deixando claro que não partirá dele a ordem para a população permanecer em casa a fim de aplacar a curva da Covid-19. “Ao contrário dos demais países, na Nicarágua, o desafio é duplo: é preciso combater a pandemia e, ao mesmo tempo, recuperar a institucionalidade democrática”, analisa Paulo Abrão, da CIDH. No que depender de Ortega, nem uma coisa, nem outra.
Fonte: G1